..::Geléia de Pérolas::..

12.9.02



O beijo da mendiga

Anoitecia em Belo Horizonte, era domingo e eu dobrava uma esquina do Palácio das Artes. Ar de bobo, saco de pipoca na mão, eu gozava férias. Foi então que eu vi. Assim, de repente. Sob o recuo de um edifício pálido, sujo, um mendigo deitado de barriga pra cima recebia um beijo da namorada. Também mendiga. Ela estava à esquerda do companheiro. Realizava um certo esforço para alcançar os lábios dele. Deitada meio de lado, apoiava-se num dos cotovelos, o direito, e com a mão esquerda segurava o queixo do homem. Este não dava sinais de reação - ao menos para mim, que passava olhando a cena sem querer que me vissem olhando a cena. Ele ficava imóvel, silente como um bêbado. Como um cadáver. A mão esquerda da mendiga poderia estar exercendo certa pressão, quem sabe procurasse impedir que a presa lhe escapasse. Ou não: aquela mão era pura carícia sobre o rosto em repouso. Não tive tempo de mirada suficiente para tirar uma conclusão. Tive apenas o tempo de me espantar. E, depois, o tempo de me espantar com o meu espanto: ora, então eu achava que mendigos não amam?
Achar que mendigos não amam, achar sem querer achar, achar sem parar para pensar que é isso mesmo que a gente acha, bem, isso é um sintoma da nossa doença. E doença que nós temos é a de desumanizar os mendigos. ''Nós quem, cara pálida?'', há de perguntar o leitor, tomado de indignação. Ao que respondo: nós, nós mesmos, os que ainda comemos três vezes ao dia (desde que o preço não seja em dólar), os que temos dentes para mastigar e algum resto de consciência moral (vaidosa) para sentir culpa pelo excesso de garfadas. Acredito que nós, todos nós, eu que escrevo, você que lê e os nossos cúmplices de classe, todos desenvolvemos esse ato reflexo de desumanizar os semelhantes. Desumanizá-los se tornou uma operação mental inconsciente para a nossa sobreviência moral. Só assim é possível conviver com a tragédia que nos cerca. ''Eles são diferentes'', a gente pensa, sem pensar que pensa. ''Eles não amam.''

Até o século 19, a justificativa moral (branca) para a escravidão consistia em construir teorias que atribuíam ao escravo (negro) uma outra condição diante da natureza e diante de Deus. Escravo não era gente e, assim sendo, a escravidão não era crime. Fácil, não? De posse dessa idéia tranqüilizadora, dessa autorização ética adornada de fundamentações teológicas um tanto barrocas, o pelourinho imperava. Agora, quando nos acreditamos eticamente mais ''evoluídos'' que os nossos antepassados escravocratas, já não suportaríamos conviver com a escravidão. Claro, claro, somos todos humanistíssimos, embora tiremos de letra a oceânica pobreza à nossa volta. Já não pensamos que a escravidão pode ser justificada porque alguém é teológica ou ideologicamente declarado um não-igual, mas acreditamos, sem admitir que acreditamos, que se alguém se encontra jogado na sarjeta, no pior abandono, amargando um cotidiano de cachorro de rua, esse alguém no fundo no fundo não é igual a nós. Não pode ser. Talvez tenha as mesmas necessidades biológicas, mas certamente não padece das mesmas carências, das mesmas aflições, do mesmo tesão. É igual no corpo, vá lá, mas não é igual na alma. Mendigos não são gente e, assim sendo, convivemos com a mendicância como quem convive com... bem, como nossos antepassados conviviam com a escravidão. E porque acreditamos que mendigos não amam, nenhum de nós é capaz de amá-los.



[01/AGO/2002]

Eugênio Bucci

8.9.02


Você olha mas não consegue pedir ajuda. Você está morrendo mas eles não acreditam, cada qual no seu mundinho de filosofias baratas compradas numa liquidação qualquer. Você é louca porque preferiu ver o pôr do sol a assistir a novela, e preferiu destruir a si própria ao invés dos outros. Você está errada pois preferiu ser sincera consigo mesma e admitiu ser mau e odiar esse mundo hipócrita. Odeio quem tenta me ajudar porque se julga superior a mim e também mais sábio e mais importante. Se eu fico triste e choro eles querem meus motivos e se não os dou, não acreditam que eles existam. Odeio todos eles porque se acham muito importantes e lutam por seus sonhos materiais usando as pessoas que cruzam seus caminhos como degraus. Odeio todos eles porque conseguem o que querem e depois esquecem o que foram e o principal. Odeio todos eles porque são iguais e se contentam com isso. Querem me convencer de que a vida vale a pena, mas não sabem que essa é uma das minhas únicas convicções e, por isso, ainda estou tentando.
O tempo esfriou de repente... melhor fechar a janela.


Quinta-feira, Setembro 05, 2002
8:32:45 PM] By Miss_Gothic ^¥^

4.9.02


Emily era legal. Era descolada, se vestia bem, sabia dançar e beber. Era amiga das pessoas mais legais da cidade. Quando as amigas mexiam em sua agenda, uivavam e babavam.
- Eu não acredito que você tem o telefone do Rodrigo Santoro!
Emily não falava nada. Sorria orgulhosa e tomava a agenda antes que o telefone caísse em mãos erradas. Ela seria feliz se não fosse um porém. Ela era gorda. Alguns anos atrás ela era até encarável. Mas com o passar do tempo ela foi ficando cada vez maior. E maior. À medida que engordava, a sua vida social diminuía. Ninguém a convidava mais para festas e seu médico a proibira de beber. Até o Rodrigo Santoro começou a disfarçar a voz ao telefone e fingir que era engano.
Um dia Emily chegou à marca dos 350 quilos e recebeu um telefonema.
- Alô, aqui é da produção do Ratinho. Nós gostaríamos de ter você em nosso programa.
- Tudo bem. Vocês servem lanche?


3.9.02
Posted by interurbanos .

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